A primeira vez que vi Abdias do Nascimento, foi numa livraria em Ipanema, onde ele inaugurava uma exposição de artes plásticas, com seus quadros geométricos e a simetria característica da simbologia africana que permanece até hoje na umbanda e no candomblé brasileiros. Com uma bata, em vez de terno e paletó, ou simplesmente uma roupa esportiva, como se usava naquele tempo, Abdias parecia um pai de santo, recebendo a todos com amabilidade. Ele estava chegando do exílio, onde permaneceu 12 anos, a maioria vivido nos Estados Unidos. Perseguido pelo governo Vargas, nos anos 40, e posteriormente pela ditadura militar, Abdias sempre foi sinônimo de resistência.
Diretor do Teatro do Negro, em São Paulo, onde nasceu, Abdias foi preso por suas ideias, mas nunca deixou de registrar seu protesto, em seus inúmeros livros e peças escritos. Eleito deputado federal, foi o primeiro parlamentar a assumir a luta contra o racismo no Congresso Nacional. Foi também o primeiro articulador das políticas compensatórias como as cotas, favoráveis aos negros, na secretaria estadual voltada para os afrodescendentes, criada pelo então governador Leonel Brizola. Suplente do senador Darcy Ribeiro, exerceu o cargo várias vezes, tendo sido homenageado por diversas universidades em vários países e pela ONU.
Em 1988, data das comemorações dos 100 anos da Abolição da Escravatura no Brasil, o Instituto de Pesquisas e Culturas Negras (IPCN) resolveu lançar um jornal, no âmbito do Programa SOS Racismo. Fui convidada então para editar esse jornal histórico, cuja capa dediquei a Abdias do Nascimento. Personalidade polêmica nos meios intelectuais ainda conservadores, naquela época, o jornal foi foco de debate em várias instâncias, inclusive no Curso de Jornalismo da UFRJ, onde se discutia se era válido ou não um jornal específico sobre o negro…
Hoje a história coloca Abdias do Nascimento em sua real dimensão. Líder da cultura negra brasileira, pensador de primeira grandeza, dramaturgo inspirado, político por natureza, Abdias se coloca entre os grandes lutadores como Martin Luther King, nos Estados Unidos e Agostinho Neto, em Angola, que preconizaram a harmonia, a paz e a solidariedade entre brancos e negros.
Matéria publicada na edição de junho de 2011 do jornal O Saquá (edição 134)