“Vida e poesia são a mesma coisa”, escreveu Mario Quintana. Decididamente, o poeta tem razão.
Em espelho abandonado no fundo do quintal, um desavisado sabiá vê-se refletido. E alvoroça-se, encanta-se e apaixona-se pela sua própria imagem. Mas com tal intensidade que dali quase não se afasta. Chega a ponto de dormir junto ao espelho e só alçar vôo para se alimentar, logo para lá retornando. Isso, dias e dias…
Diante da aflição prolongada do pássaro, resolvi conversar com o amigo, poeta, escritor e médico psiquiatra, Luiz Gondim. Perguntei-lhe qual seria meu melhor procedimento: retirar o espelho, pondo fim a aquele sofrimento ou deixar que ele lá permanecesse até o fim daquela exaustiva paixão? Sabiamente Gondim opinou: “Eu não interferiria…” Concordei com ele. O tempo passou e a vida seguiu seu curso. Mas ficamos de tal forma seduzidos com a estória, que do fato escrevi o poema “Inocência”, e ele, a crônica “Sedução”, transcritos a seguir, juntamente com o envio das fotos do apaixonado sabiá.
“Vida e poesia são a mesma coisa”…
Inocência
Beatriz Dutra
Em espelho abandonado
no fundo do quintal,
curioso sabiá vê-se refletido.
Em inusitada cena
de alvoroçado encanto
apaixona-se pela própria imagem.
Em comovente inocência
dança para si mesmo/tentando a sedução.
Durante todo o dia, em frenesi,
põe-se a bicar (ou beijar?)
aquele frio espelho.
Dali só se afasta
para se alimentar,
logo retornando à presença
daquela fantasiosa companhia.
Mas depois de incontáveis e vigorosas bicadas,
eis que o espelho se estilhaça,
fragmentando para sempre
o sonho daquele impossível amor.
Sedução
Luiz Gondim
Há algumas semanas ouvi um relato que me impressionou, revelado por alguém que respira, se nutre e transmite pura poesia: Beatriz Dutra. O episódio aconteceu no quintal de sua casa, envolvendo um sabiá e um antigo espelho já aposentado. A ave, em determinado momento, viu-se refletida no espelho e, a partir daí, transformou-se da curiosidade da descoberta ao deslumbramento, enamorou-se em misto de sedução e encanto. O sabiá sem o saber busca acesso à sua própria imagem. Reiteradas vezes se olhou, ia e voltava: descobrindo novos ângulos assumindo graciosas posturas. A sedução avançava e o envolvia por inteiro. Minha amiga, privilegiada expectadora, a tudo registrou nas retinas e na memória, mas também com a máquina fotográfica.
O episódio fez-me lembrar “o mito de Narciso” com todas as implicações psicológicas a ele pertinentes. Enquanto Narciso foi punido pela deusa, o pássaro foi abençoado pela natureza.
A quebra do espelho pelas ansiosas investidas do sabiá foi um corte naqueles instantes mágicos e dificilmente traduzíveis mergulhos delirantes e alucinatórios, mas o pássaro dali saiu enriquecido.
Ouvi o relato, li o poema e, como resultante inevitável, surgiu a crônica. Percebo, capto a beleza da autodescoberta, da mais pura sedução e, o que e mais importante, da autoestima. Em se gostando, o ser humano torna-se capaz de gostar do próximo e também ser gostado. Aceita-se com erros e acertos, limitações e qualidades, até porque são inerentes à própria existência.
Se pudermos, vamos manter o espelho vivo; caso contrário guardemos a imagem autêntica e inesquecível.
Obrigado Beatriz por tua inspiração e pela beleza da poética criação.
Grande!
Beatriz.
Sua sensibilidade de poetisa captou a imagem que passaria despercebida para tantos, e que Godim descreveu com tanto lirismo.
Como e bom ler em um jornal algo que eleva o astral, e não só o pássaro, mas agente também, sair enriquecida.
Espero ler mais artigos semelhantes.
Parabéns