Apesar de induzido por uma alta popularidade que o faz trajar-se de Nosso Guia ou Venerável Mestre, o presidente Lula foi convencido a não oficializar o 3º mandato, através de uma Emenda Constitucional, pois o deixaria exposto à acusação de casuísmo, em proveito próprio. Das ideias alternativas, como a da clonagem do 3º mandato, apresentadas por arquitetos do poder, Lula preferiu a que consistia na escolha de uma criatura eleitoral, tirada do bolso de seu colete a prova de mensalão. E aí indicou para sucedê-lo a xerife do Palácio do Planalto, Dilma Roussef, obviamente pessoa de sua extrema confiança, a ponto de, uma vez empossada, não ser capaz de apropriar-se da cobiçada caneta do Nosso Guia.
Essa montagem política, falseando um projeto de governo que, na verdade, pode ser um projeto de poder por tempo indeterminado, bloqueando ao máximo a sadia possibilidade da alternância de poder, vital para o desenvolvimento sustentável de uma democracia, transformou a sucessão de Lula numa acirrada guerra de bastidores com diversas vítimas. O deputado federal Ciro Gomes é a principal, daí sua irritação traduzida por ácidas declarações contra o projeto político-eleitoral do presidente de forjar um 3º mandato.
A desistência de candidatura à presidência da República imposta a Ciro Gomes é um golpe na democracia. E, pior, por interferência explicita de um presidente da República, fritando uma candidatura em benefício da que escolheu para suceder-lhe, agredindo o princípio democrático da livre escolha do eleitor sobre quem ele quer para governar seu país. Isto porque Lula, patrono da candidatura de Dilma, vislumbrou o risco de Ciro, político com razoável quilometragem em campanhas eleitorais, inclusive como candidato a presidente da República, chegar à frente da sua escolhida, já no primeiro turno.
O nosso Guia prevalecer-se do poder de presidente para impor ao eleitorado uma escolha plebiscitária, como se houvesse só um lado bom, é transformar o jogo democrático numa pelada do “nós contra eles”. Como, aliás, já vem ocorrendo na maioria dos 66% de municípios brasileiros que apresenta baixíssimo IDH ( Índice de Desenvolvimento Humano). Essa prática esparrama-se pelos Estados e agora, lamentavelmente, até na eleição para presidente da nação, remetendo-nos àquela farsa eleitoral, no tempo da ditadura, com a dicotomia Arena x MDB.
A fritura de Ciro ressuscita o termo “cristianização” cunhado na eleição de 1950, quando o mineiro Cristiano Machado, lançado pelo então PSD, teve a candidatura a presidente esvaziada pelo próprio partido que se aliou ao PTB para eleger Getúlio Vargas. E ressuscita também a hipocrisia de um dispositivo constitucional, segundo o qual todo cidadão tem o direito de votar e ser votado. Mentira! O cidadão brasileiro não tem direito de votar e sim dever, porque o voto é obrigatório, e também não tem direito de ser candidato a um cargo eletivo. Só será se os ajuntamentos eleitorais, camuflados sob pomposas siglas com as palavras-chaves “social, trabalhista, progressista, cristão, democrático e republicano” permitirem. O caso de Ciro é a prova disso. Quando estava sendo elaborada a chamada “Constituição Cidadã” de 1988, o então líder comunista Luiz Carlos Prestes, que não era constituinte, sugeriu à bancada de esquerda a inclusão de um artigo criando a figura do candidato avulso, desvinculado dos esquemas partidários. A proposta foi apresentada e, claro, rejeitada. Se tivesse sido aprovada, Ciro hoje poderia ser candidato e a democracia estaria sendo revigorada.
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Artigo publicado na edição de maio
de 2010 do jornal O Saquá (edição 120)