Após uma peregrinação de 222 dias (sete meses e 12 dias) pela Câmara, vítima de ação protelatória, o projeto de lei da Ficha Limpa foi encaminhado ao Senado onde, uma semana após a votação na Câmara, foi também aprovado pela unanimidade dos presentes (76 senadores) em clima de festa e euforia no plenário. Fruto de um amplo movimento de grupos organizados da sociedade, que reuniu 1,7 milhão de assinaturas, o projeto visava impedir o acesso à vida pública de candidatos já condenados em primeira instância judicial, numa contraposição ao entendimento da Justiça de somente não conceder registro aos candidatos que tiverem condenações finais, após os recursos sucessivos que demoram décadas para serem julgados.
O projeto Ficha Limpa tem um significado histórico por marcar uma reação concreta da sociedade contra a erosão moral que ameaça tornar a nossa democracia representativa uma coisa irrelevante, propícia à proliferação dos aventureiros apologistas da doutrina “eu quero é me arrumá”. Foi sob pressão da sociedade que o Congresso aprovou o projeto Ficha Limpa, mas com mudanças na redação que abriram brechas para aliviar punições, sugerindo que a lei só valerá para condenações futuras, podendo excluir os processos em julgamento e os já julgados. Onde se lia sobre a não concessão de registro para “os que tenham sido condenados” o texto foi alterado para “os que forem condenados”. Autor de cinco emendas de redação, o senador Francisco Dornelles rebateu a insinuação de que elas teriam por objetivo beneficiar colegas de partido como o deputado Paulo Maluf. Seria muita ingenuidade admitir que o senador Dornelles, uma das remanescentes raposas felpudas que ainda atuam no Congresso, estivesse apenas preocupado com a “harmonia estilística” para o “aperfeiçoamento do projeto” no Senado, como justificou.
A aprovação do projeto Ficha Limpa é vista por especialistas em Direito Eleitoral como uma violação ao dispositivo constitucional que prevê a presunção de inocência (e o país está lotado de “inocentes”, principalmente “úteis”) até que uma ação seja transitada em julgado. O especialista em Direito Eleitoral, Alberto Rollo, sustenta que os políticos só devem ser considerados condenados depois do trânsito em julgado. E acrescenta: “Lá atrás, uma decisão dessas era ditadura”. Aliás, o deputado petista, José Genoino, envolvido no escândalo do mensalão, é um dos que veem no Ficha Limpa “um viés autoritário”. É mole? Não, é muito duro.
Outros , porém, aprovam a proposta, como Gustavo Severo, secretário do IBDE ( Instituto Brasileiro de Direito Eleitoral): “A lei é benéfica porque não presume culpa ao candidato, que continuará respondendo por seus crimes na esfera criminal. O que a lei da Ficha Limpa considera é que ele não está apto para concorrer a um cargo eletivo, o que não significa que ele já está condenado ou que foi violado o princípio de presunção de inocência.”Mas o novo presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), Ricardo Lewandowski, jogou baldes de água fria na euforia dos que esperavam que a lei Ficha Limpa enquadrasse os candidatos já condenados. Segundo Lewandowski, uma lei não pode retroagir pra prejudicar alguém. A lei só pode retroagir para beneficiar.
As coisas sérias desta republiqueta tupiniquim ou acabam em pizza ou no Judiciário. Com a lei Ficha Limpa teremos a judicialização da política, agora pelo corporativismo explícito dos congressistas, que manipularam o projeto até o minuto final da votação no Senado para distorcer o espírito da lei. E, assim, muitas figurinhas carimbadas podem ficar tranquilas, dormir um sono profundo, deitadas eternamente em berço esplêndido porque não serão alcançadas pelo “autoritarismo” da lei Ficha Limpa. Parece que ainda não foi desta vez que ficaremos livres daquela cínica cantilena marguerita: “Rouba mas faz!”
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Artigo publicado na edição de junho
de 2010 do jornal O Saquá (edição 121)