Quando, de quatro em quatro anos, 32 nações de todos os continentes reúnem-se no território de uma delas para disputar a Copa do Mundo, o que está em jogo é o título de campeão mundial de futebol para o país que melhor tratar essa ilustre mulher cuja forma é a que a mãe-Terra lhe deu. Gerenciada pela FIFA que, pouca gente sabe, aglutina mais países-membros do que a ONU, ela é uma celebridade popularmente chamada de Bola e encarregada de atender aos insistentes apelos dos 22 jogadores numa partida de futebol, que a importunam intermitentemente, durante 90 minutos, sempre prometendo um rápido descanso na rede.
Este ano, desembarcou na África do Sul, leve, livre, solta, remoçada, incontrolável, poderosa e, principalmente, polêmica, sendo logo apelidada de Jabulani que, no idioma zulu, significa “celebração”. Com 32 gomos não costurados, diminuindo bastante o atrito com o ar, a Jabulani muda subitamente sua trajetória, prejudicando a relação com seus diversos amantes, principalmente os goleiros, flagrados várias vezes como se estivessem “cercando frangos”. Ela também engana os outros jogadores que não são goleiros, quando eles manifestam o desejo de recebê-la. Para o Luiz Fabiano, atacante brasileiro, a Jabulani é sobrenatural porque sai esvoaçante, ziguezagueando sem direção. Já o goleiro Júlio César diz que ela parece com aquelas bolas que a gente compra no supermercado. De fato, os tempos fizeram a Jabulani diferente de suas avós que corriam mais em linha reta. E vários jogadores questionam se é justo celebrar alguém tão traiçoeira como a Jabulani. Quem sabe eles não estão conseguindo, tratá-la com o carinho que merece.
Mesmo rolando permanentemente numa grama contaminada pela grana, a Jabulani às vezes até passa por vaidosa, mas sem deixar-se corromper pelo mercantilismo que insiste em tentar desvirtuar o esporte. O que se vê são jogadores famosos, técnicos engravatados, árbitros coloridos, locutores e comentaristas, repórteres e torcedores, todos submissos ao vedetismo da Jabulani, que brilha como um satélite, girando em torno de um mundo ajoelhado, embevecido, paralisado por feriados para reverenciá-la. Até o Cid Moreira, fascinado, exclama solenemente numa vinheta da TV Globo: “Jabulaaaani!”
É impossível falar de bola sem lembrar do grande cronista esportivo Armando Nogueira, recentemente falecido, que para muitos , entre os quais me incluo, foi um poeta do futebol, quando escreveu, por exemplo: “A paixão pelo futebol tem me pesado a vida de tantas emoções que já não tenho mais o direito de lastimar se um dia a morte me quiser surpreender no instante de um gol.” Em relação à principal personagem do futebol, Armando definiu: “A bola em si, ela é um elemento fascinante, é um brinquedo sedutor, um brinquedo mágico, que adiciona poesia e lirismo em sua relação com o homem. Se a bola imaginasse o quanto ela é importante para a humanidade, não andaria rolando por aí, de pé em pé.”
Sobre o quanto ela é humilde, apesar de sua importância, e reconhecida àqueles que a tratam bem, Armando escreveu: Que os meninos de hoje falem para os meninos de amanhã que até a bola do jogo pediu autógrafo a Pelé”. E mais: “A bola é aquela flor que nasce nos pés de Zico com cheiro de gol.” Enfim, por uma questão de justiça e distinta consideração, que a Taça Jules Rimet de 2010 seja entregue ao país cujos jogadores não pisem na bola, essa divina esfera que põe o mundo com os pés no chão e as mãos para o alto, exaltando as vitórias, enaltecendo a fraternidade e, sobretudo, externando a consciência de que no esporte, os derrotados são apenas adversários e não inimigos.
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Artigo publicado na edição de julho
de 2010 do jornal O Saquá (edição 122)