Recentemente o mundo literário sofreu forte baixa com a morte do escritor português José Saramago, aos 87 anos. Saramago, que recebeu no ano de 1998 o Prêmio Nobel de Literatura, deixou importantíssima obra liberária, mas também polêmica, especialmente pela forma democrática de abordar grandes questões e de irritar a Igreja Católica com um ateismo ácido. Em seu livro Caim (Compahia das Letras), o escritor faz uma reflexão sobre passagens Bíblicas e utiliza-se de ironia para demonstrar ao leitor que a fé não deve ser cega, diante de certas evidências. No livro, Saramago utilizou toda irreverência para se posicionar sobre Josué, capítulo 10, versículos 12 a 14.
“O sol e a lua são detidos”. 12 “Então Josué falou ao Senhor, no dia em que o Senhor deu os amorreus na mão dos fihos de Israel, e disse aos olhos dos israelitas: Sol, detem-te em Gibeão e tu, lua, no vale de Aijalom. 13.E o sol se deteve, e a lua parou, até que o povo se vingou de seus inimigos. O sol, pois, se deteve no meio do céu, e não se apressou a pôr-se, quasi um dia inteiro.14. E não houve dia semelhante a este, nem antes nem depois dele.(…); porque o Senhor pelejava por Israel.
O episódio bíblico narra o dia em que o sol deteve-se no meio do céu, para que o dia demorasse a cumprir seu ciclo, possibilitando que os inimigos amorreus pudessem ser derrotados à luz do dia. Mas Saramago narra a seu jeito: “(…) Aqui estou, senhor. Faz-me saber a tua vontade. Suponho que a ideia que te nasceu na cabeça (…) foi a de pedir-me que parasse o sol. Assim é, senhor, para que nenhum amorreu escape, Não posso fazer o que me pedes. (…) Que não podes fazer parar o sol, perguntou (…) Não posso fazer parar o sol porque parado já este está, sempre o esteve, desde que o deixei naquele sítio. Tu és o senhor, tu não podes equivocar-te, mas não é isso o que os meus olhos vêem. O sol nasce naquele lado, viaja todo o dia pelo céu e desaparece no lado oposto até regressar na manhã seguinte. Algo se move realmente, mas não é o sol, é a terra. A terra está parada, senhor, disse Josué em voz tensa, desesperada, Não, homem, os teus olhos iludem-te, a terra move-se, dá voltas sobre si mesma e vai rodopiando pelo espaço ao redor do sol. Então, se assim é, manda parar a terra, que seja o sol a parar ou que pare a terra, a mim é-me indiferente desde que possa acabar com os amorreus. Se eu fizesse parar a terra, não se acabariam só os amoreus, acabava-se o mundo(…) Tomando estas palavras como despedida, Josué levantou-se do mocho, mas o senhor disse ainda, Não falarás a ninguém sobre o que foi tratado aqui entre nós, história que virá a ser contada no futuro terá de ser a nossa e não outra. Josué pediu ao senhor que detivesse o sol e ele assim fez, nada mais. A minha boca não se abrirá salvo que seja para confirmá-la, senhor. Vai e acaba-me com esses amorreus.(…)”.
Vê-se, assim, duas versões para a mesma história: uma na Bíblia, onde o sol pára para prolongar o dia, outra, do escritor, que sabe, pois a ciência provou desde Copérnico, que o sol é o centro do sistema solar, girando em torno dele a terra e os demais planetas. Saramago disse certa vez que “A Biblia tem coisas admiráveis do ponto de vista literário”. Sobre Deus, poetisou: “Deus é o silêncio do universo, e o homem o grito que dá sentido a esse silêncio”. Tenho minhas convicções sobre Deus e o Universo, não compartilhando com Saramago em muitos pontos, mas não posso deixar de admirar sua obra literária, que fica para a posteridade.
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Artigo publicado na edição de agosto
de 2010 do jornal O Saquá (edição 123)