As mais de 200 mortes de jovens universitários, estupidamente, na boate Kiss, em Santa Maria, Rio Grande do Sul, deram prosseguimento a uma ininterrupta sucessão de tragédias que assola o país, deixando-nos traumatizados e diante de uma séria reflexão sobre a cultura brasileira do descaso, da impunidade e da corrupção, esta última em suas duas faces, a do corruptor e a do corrompido, em todas as suas dimensões, desde a propina com que se compra o perdão do agente público fiscalizador até os grandes golpes aplicados contra o Erário. No Brasil, as tragédias anunciadas ou previsíveis, ocasionadas por descaso ou imprevidência, recebem todas o mesmo nome: “fatalidade.” Assim são classificadas as chuvas e os desabamentos que matam centenas de pessoas a cada verão e assim também foi classificado o incêndio da boate de Santa Maria por seus donos.
Isto é que precisa ser prontamente refutado. Não houve fatalidade e o noticiário está repleto de evidências de que diversas causas, decorrentes das responsabilidades humanas, contribuíram para o desastre. Crer em “destino” não ajuda em nada o país a rever procedimentos condenáveis, já enraizados na cultural nacional, que transformaram a Kiss no emblema de um fato que se inclui entre os mais funestos do mundo, comparável a incêndios como o que, em 2004, matou quase 200 pessoas na Argentina e o que deu o mesmo destino a outras 300 na China, em 2000 – ambos também em boates. O nome para a culpa por este e outros episódios semelhantes não é fatalidade, mas sim impunidade, uma espécie de mãe de todos os vícios brasileiros, não apenas o da corrupção. Então, aqui se faz e aqui, em geral, não se paga. O da Argentina, por exemplo, levou o dono a uma prolongada permanência na prisão.
Governadores e prefeitos acordam e, sem disfarce, procuram faturar em cima dos defuntos, anunciando varreduras e, em algumas cidades, muitos estabelecimentos foram imediatamente interditados. Mas por que só agora, depois da tragédia de Santa Maria, é que foram descobertas tantas irregularidades? Nunca se fez tanta vistoria. Talvez fosse mais prático perguntar: quem tem este raro documento chamado alvará de funcionamento? Ao que se sabe, quantidade de leis é o que não falta. O que falta é outra coisa: a lei no Brasil deixar de ser o instrumento produzido pelos políticos, através do qual eles criam dificuldades para oferecer facilidades em troca dos votos que lhes garantirão o poder. Para quem já esqueceu o ano de 2012 foi um ano eleitoral. Muita gente deve ter trocado o voto pela dispensa do alvará ou sua concessão sem a vistoria.
O que chama atenção é constatar nas cartas dos leitores nos jornais que quando todo mundo acha que daqui a dois, três meses ninguém mais vai se lembrar dos alvarás, das portas de emergência, dos revestimentos das paredes e dos tetos das boates, restaurantes e casas de festas. Muita gente acha que é apenas uma onda e como tal vai passar. E por que tanta gente acha isto? Porque o Bateau Mouche virou e ninguém está preso, porque o bondinho de Santa Tereza caiu no esquecimento e porque o caso do Morro do Bumba, em Niterói, ficou sem punição.