Uma história de luta e resistência negra em Saquarema no ano de 1730
Por: Dulce Tupy
Um dos capítulos mais encobertos na história de Saquarema é sem dúvida a do Quilombo de Bacaxá, descoberto em 1730, quando o então governador do Rio de Janeiro, Luis Vahia Monteiro, tomou conhecimento, através de uma carta enviada pelo juiz de Santo António de Sá, localidade onde hoje se encontra o Comperj, Complexo Petroquímico do Estado do Rio de Janeiro, em Itaborái. Conforme a denúncia do capitão e juiz Sebastião Gomes Sardinha, no início de agosto, dois caçadores de Santo António de Sá foram mortos a flechadas por um grupo de 50 a 60 negros no sertão de Bacaxá.
Denunciado o quilombo, em 11 de agosto de 1730, veio a resposta do autoritário governador que, diante da notícia dos “negros quilombeiros”, tomou imediatas providências, estranhando que a notícia não havia chegado pelos oficiais militares responsáveis pela área e sim pelo capitão juiz de Santo António de Sá. O violento governador Vahia enviou também, para se precaver, uma carta ao coronel João de Abreu Pereira, determinando o combate urgente à “desordem” pelo “perigo de semelhantes e maiores consequências”, recomendando que reunisse seus oficiais de maior confiança e soldados auxiliares “mateiros” para dar fim ao Quilombo de Bacaxá.
Naquela época, o sertão de Bacaxá se estendia da margem esquerda do Rio Bacaxá, na Serra da Castelhana, até o sul da Lagoa de Saquarema, passando pela serra do Amar e Querer, no limite com o sertão de Tanguá. Eram terras praticamente “incultas”, quer dizer sem cultivo algum, praticamente vazias. Tanto que, anos depois, no mapa feito por Vieyra Leão em 1767, só aparecem registrados no campo de Bacaxá o Curral de Sombá, o Curral do Meio, Bacaxá e o Curral de Baixo. Os maiores povoamentos próximos eram Cabo Frio, de um lado e Santo António de Sá, do outro, onde florescia a cana de açúcar e engenhos.
Santo António de Sá, hoje Itaboraí, era o local mais povoado da baixada litorânea, desde fins do século 17, e por isso mesmo o mais interessado em destruir o Quilombo de Bacaxá, situado na fronteira de suas fazendas. Ao tomar conhecimento da morte dos dois caçadores atacados por quilombolas de Bacaxá, já no dia seguinte o governador Vahia escreveria ao capitão mor da Vila de Santo António de Sá, Caetano de Souza, cobrando-lhe providências e reclamando por não ter sido notificado por ele e sim pelo juiz Sardinha. Na mesma carta, o governador ordena-lhe que junte as forças possíveis para liquidar o quilombo, caçando os negros “presos ou mortos”.
E como dizia o tirano Vahia em carta do dia 14 de agosto ao coronel Abreu: “é necessário não só extinguir o dito quilombo, mas prender todos os negros e negras e filhos que tiverem no mato (…) puxando, se necessário for, por todo seu Regimento (…) mandando as companhias de Maricá e Saquarema”. E justifica em seguida: “não me contento com os afugentar (os negros quilombolas), nem com a desculpa de que se meteram no mato, porque por esse mesmo mato, por onde entram os negros, podem entrar (também) os soldados e brancos”. E determina: “é necessário que os vivos, e mortos se resistirem, venham a minha presença, porque de outra sorte virão todos os dias os negros a insultar esse País”.
“23 cabeças” presas e o sumiço de uma “crioula”
Além desta intimação ao militares locais, o governador intimou também o capitão José de Águila Moreira que partiu do Rio para a sua fazenda em Saquarema, chegando no dia 26 de agosto, pronto para o combate que se iniciaria no final de setembro. Assim, com os preparativos feitos, com o envio de pólvora e balas – ficando os mantimentos (farinha e peixe) por conta dos comerciantes e fazendeiros locais – a perseguição ao quilombo começou! Na verdade o quilombo era dois: o quilombo velho, mais antigo e grande, e o quilombo novo, bem menor.
Nos primeiros dias de outubro o combate já exibia seus trunfos: os negros quilombolas capturados foram levados para o Rio de Janeiro, escoltados por um tenente e soldados. Eram “23 cabeças”, conforme foi registrado na carta do capitão João de Abreu Pereira enviada ao governador Vahia. Mas pelo próprio relatório do capitão, as contas apresentadas não batiam com as do governador que reclamou a falta de uma “crioula”. Há hipóteses de que ela tenha sido morta, pela crueldade dos castigos. Mas não há confirmação…
Como há relatos também de que, se não fosse o episódio da morte dos dois caçadores de Santo António de Sá, os quilombolas, negros e mulatos de Bacaxá não teriam sido denunciados, porque o quilombo já existia há anos, talvez décadas, com seus mocambos (palhoças) e roças, vivendo numa certa harmonia com as populações locais, praticando escambo (troca) com alguns comerciantes e mantendo uma comunicação clandestina, mas atuante com os escravos nas fazendas. Na Serra do Amar e Querer, registrada no mapa de Vieyra Leão, também foi registrada uma localidade com o nome de Pico do Quilombo, que ainda precisa ser investigada.
O fato é que as histórias passaram de boca em boca, nas fazendas, mas poucas, pouquíssimas chegaram até hoje. Ficaram apenas as lendas. E contos e poemas como os que foram publicados no livro “Testemunhos IV & Verso e Prosa”, da Oficina Literária Ivan Proença, a mais antiga oficina literária existente no Brasil.
Contos e poemas foram inspirados no Quilombo de Bacaxá
O livro da Editora Oficina do Livro (Rio de Janeiro, 2003), do casal de professores Ivan e Isis Proença, moradores do Rio mas com casa de veraneio em Saquarema há mais de 20 anos, tem contos e poemas inspirados no histórico Quilombo de Bacaxá. Vale destacar o da jornalista Marisa de Oliveira chamado “Propriedade de Jesus” por sua narrativa impregnada de suspense com toques de realismo fantástico, onde a personagem bem poderia ter sido a “crioula” que desapareceu.
No conto, a escrava que tinha sido amante do filho do fazendeiro reencarnou na neta (ou bisneta?), criada na capital por uma família branca, sem saber de suas origens mestiças. Ao ficar doente e começar a frequentar uma casa de cura, a jovem começou a reviver o passado dramático de seus ancestrais, acordando transtornada, com ranhaduras, feridas, desgrenhada, sem explicação aparente. A jovem sonha então com outra jovem negra que corre numa mata escura e densa, onde é presa numa armadilha em que se encontra o amante branco, filho do senhor, assassinado pelos militares que destruíram o quilombo. Envolto num forte sincretismo religioso o conto se encerra de forma surpreendente.
“Manteve-se acocorada por muito tempo, as pernas e o coração dormentes. Alerta, quando pensou ouvir apenas a natureza, avançou. Sinhô, tão lindo, parecia lhe sorrir. A mão, em sofrimento, esticou-se para tocá-lo. Não conseguiu, pegaram-na primeiro com a ponta do chicote. A dor não foi maior que perder o amor. Açoitada sem dó, as pernas da crioula, lanhadas, sangravam, as chagas se abriam nas costas. E porque não morria como os outros quilombolas, levaram-na amarrada, arrastada pelo caminho através da mata fechada, que pensava fosse só dela. Quando o verde se abriu em céu, aquela mulher de pele negra, a crioula, tingida por um vermelho sangue sofrido, vislumbrou Nananburuquê, linda, sorrindo. E a crioula entendeu. Nascera quilombola, nascera para ser livre. Da dor fez-se liberta, criou asas e voou. De cima, Amar e Querer era muito mais linda. Tiê sangue, escolheu pousar no cajá do mato. A alma, Nananburuquê acolheu. Era agora propriedade de Jesus.”
Fantástica matéria.
Tive conhecimento de escravatura aqui mesmo em Saquarema..o que seria natural pela plantação de cana de açúcar e fazendas de laranja.
Cheguei a conhecer uma senhora que foi de família escrava..seu nome era Dona Sebastiana, que já faleceu há uns anos atrás e seus antepassados foram escravos..residia aqui em Itauna.
Tinha muita história para me contar, mas infelizmente não deu tempo devido a sua doença.
Parabéns pelas belas informações…adoro história!