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“Gracias” – Autobiografia de João Massena

O professor João Massena com parte da família na Praia no Gravatá, onde tem uma casa sempre cheia de amigos e parentes (Foto: Facebook/João Massena)

Luiz Carlos Prestes Filho

“Gracias a la vida / que me ha dado tanto”
(Violeta Parra, 1966)

O livro autobiográfico de João Massena, Kanimambo, publicado pela Letra Capital Editora, tem estrutura similar a da canção de Violeta Parra “Gracias a la Vida”, conhecida no Brasil em duas interpretações: na voz de Mercedes Sosa e na de Elis Regina. Canção dramática, foi composta um ano antes da autora cometer suicídio. No seu livro, lançado recentemente no Museu da República, no Rio, João Massena repete ao longo da narrativa a palavra “kanimambo”, que significa “obrigado”, em changana, língua nativa da Província de Maputo, em Moçambique. É uma cronologia de vida do autor. Verdades de um homem que desejou ser feliz, fazer o mundo ser feliz e ver os seus entes próximos felizes.

“Esta viagem”, recorda o autor ,“eu jamais esquecerei em minha vida, pois eu estava algemado com meu pai, ele segurando minha mão para que a algema não nos machucasse e ficava me encorajando a todo momento. Aquilo talvez não fosse necessário, pois por dezenove anos eu assisti aos seus atos e creio que era o suficiente para que agisse com dignidade. Aprendi com ele a ter personalidade, firmeza nos meus atos e continuar na luta que, sei não terminará aqui e nem enquanto não alcançarmos a democracia e diminuirmos a desigualdade no país. Como não sabíamos para onde eles estavam nos levando e nem qual eram as verdadeiras intenções, o pai, apertando a minha mão durante a viagem, me disse: se te derem choque elétrico, grites, pois assim vai aliviar a dor”.

“Kanimambo”, em língua moçambicana, quer dizer obrigado, “gracias”, em espanhol

Nestas linhas, a síntese do livro. Nelas destaco as seguintes palavras cravadas nas entrelinhas: viagem, pai e dor. O livro, primeiro seria uma biografia do pai, João Massena Melo, militante comunista, desaparecido no período de regime autoritário implantado no Brasil após o Golpe Civil-Militar de 1964. Vereador, em 1945, e deputado estadual, em 1962, cassado em ambas legislaturas, foi um pai marcante na infância e na adolescência do autor, seu filho João Massena, preso com o pai aos 19 anos. Sempre à disposição da família, apesar dos impedimentos naturais da luta, exigente no cumprimento dos deveres e nos momentos de alegria, João Massena Melo é um dos desaparecidos políticos no Brasil. Seu corpo nunca foi devolvido à família pela ditadura.
Na autobiografia de João Massena, o filho, imagens do Aero Willis oficial da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, onde o pai era deputado, se misturam com a Kombi, rumo à Saquarema, onde a família tinha uma casa no centro da Vila. Mais adiante, o fusquinha azul, clandestino, rumo à cidade de São Paulo se confunde com o Aero Willis velhinho, moçambicano, em seu exílio na África, onde viveu anos com sua família, construída com a esposa Rosa Prestes, primeira filha do famoso Cavaleiro da Esperança, o comandante Luiz Carlos Prestes, herói da imbatível Coluna Prestes, prisioneiro político no governo Getúlio Vargas e posteriormente senador cassado no governo Dutra, quando também foi cassado o pai de Massena, o operário tecelão e depois metalúrgico, o deputado João Massena Melo.
Viagem é uma palavra que atravessa a narrativa em todos os momentos. Inclusive, através da geografia familiar que teve que se deslocar inúmeras vezes pelo país e mais tarde para a Rússia, República Democrática Alemã, Cuba, Guiné Conacri e Peru. Mas foi em Moçambique que o professor e químico, formado em Moscou, Massena viveu como em uma segunda Pátria, durante anos de exílio. Dor é outra palavra recorrende nesta autobiografia marcada pelas prisões, separações, inseguranças, guerras, assassinatos.

“Já algum tempo, desde quando frequentei pela primeira vez o consultório do cardiologista, ou do psiquiatra/psicoterapeuta, e após relatar trechos de minha vida para que eles entendessem os sintomas que me atormentavam, me aconselharam a escrever um livro com minhas aventuras e desventuras por este mundo afora. Teriam eles detectado algum sintoma grave para indicar tal tratamento? Ou quem sabe, gostariam que outras pessoas conhecessem, com mais detalhes, essa história vivida?”, se pergunta o autor, agora tornado escritor para sempre.

Em seu livro, Massena confessa que em 1993, depois de passar por situações de fobia, consultou especialistas que receitaram medicamentos de tarja preta para controle da situação. Foi com muita perseverança que ele aprendeu mais sobre sua doença, seus sintomas e compreendeu como enfrentar o desconforto que surge “quando ocorre no país um evento sócio-político”. Assim, João escolheu o caminho oposto da compositora chilena Violeta Parra, que se suicidou numa crise de depressão! João optou pela vida e pela coragem de contar a história onde foi construtor e não “coadjuvante”, onde foi ator e não “testemunha”.

Grande honra ter João Massena como cunhado. Sua figura para mim, pelo menos nos últimos 40 anos, sempre esteve envolta de alegria e leveza. Sinceramente, ele conseguiu esconder bem os seus sofrimentos dos meus olhos e da minha sensibilidade: através do samba (ele me ensinou alguns passos), das piadas, do futebol. Grande a bravura dele! Quanta coisa meu cunhado calou? Quanto desabafo ele censurou internamente e só agora revela?

O livro Kanimambo, de João Massena, não é um discurso homogêneo, coeso, indivisível, como aqueles textos dogmáticos do passado. Demonstra um ser maleável, adaptável; pessoa que sabe aceitar sua identidade fragmentada, construída e reconstruída continuamente. É um grito como aquele que um dia seu pai pediu para gritar: “assim vai aliviar a dor”.

 

Quem foi João Massena Melo

João Massena Melo pai do autor, na Praia de Muriqui, com os três filhos (Foto: Facebook/João Massena)

João Massena Melo nasceu em Palmares, Pernambuco, em 1919, onde viveu até 1950. Durante a ditadura do Estado Novo, instaurada pelo presidente Getúlio Vargas, conviveu com Agildo Barata e Carlos Marighella, quando presos na Ilha de Fernando de Noronha. Mudando-se para o Rio de Janeiro, foi operário tecelão e metalúrgico. Militante e dirigente do Partido Comunista Brasileiro (PCB), foi cassado duas vezes; primeiro, em 1948, depois de eleito vereador do Distrito Federal pelo PCB; e, em 1964, quando era deputado estadual da Guanabara, eleito em 1962, pelo Partido Social Trabalhista (PSC).

Condenado pelo Conselho Permanente da Justiça Militar, em 1966, viveu na clandestinidade na antiga União Soviética, onde fez cursos universitários. De volta ao Brasil, em 1970 foi preso junto com sua família e encarcerado na Ilhas das Cobras. Solto em 1973, foi preso em 1974, em São Paulo, e continua desaparecido até hoje. É um dos casos investigados pela Comissão da Verdade, que apura mortes e desaparecimentos na ditadura civil-militar brasileira. Deixou a mulher Ercila e três filhos, entre eles João Massena, autor do livro.

 

 

 

 

 

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