“Não queiras compreender. Viver ultrapassa todo entendimento”, escreveu Clarice Lispector. Somos considerados animais superiores porque somos racionais, mas grande parte dos fatos da vida nós não compreendemos.
Dois acontecimentos, ocorridos há tanto tempo, não se apagam da minha memória e estão nesse rol dos fatos incompreensíveis:
O primeiro, na década de 60, era aluna do Instituto de Educação, famosa e charmosa escola de preparação para formação de professores. Pois bem, num intervalo de aula, deixei meu casaco azul-marinho, de lã suíça – que me tinha sido presenteado por uma querida amiga de minha mãe – nas costas da cadeira, e ausentei-me ligeiramente da sala. Quando voltei, misteriosamente, meu casaco desaparecera. Perplexidade e incompreensão: um furto praticado por uma futura professora? Uma futura educadora? Nunca me refiz daquela decepção.
O segundo, naquela tarde friorenta do velório do meu irmão adolescente, que morrera inesperada e tragicamente, em virtude de um acidente de automóvel. Atordoada e traumatizada com o acontecido, em determinado momento ausentei-me da capela onde o corpo estava sendo velado, e, distraidamente, deixei minha “japona” azul-marinho, com lindos botões dourados, no banco onde estava sentada. Fui tomar um cafezinho para me reanimar. Não havia reparado, mas nesse curto espaço de tempo, a “japona” desapareceu para sempre. Em meio à dor e tragicidade, o furto traiçoeiro. Outra incompreensão: mas tinha que ser justamente naquela situação de dor e desalento?
Mais recentemente, os jornais noticiaram outro comportamento inadmissível. Agora o desrespeito foi a um bem público. Pela quarta ou quinta vez, as costas de uma das cadeiras que compõem a cena do conjunto escultural de “Conversa de Botequim”, em homenagem ao “Poeta da Vila”, Noel Rosa, foram arrancadas e levadas por algum vândalo. A agressão à escultura não revela, apenas, um roubo de caráter econômico, pois o bronze tem algum valor. Mas a absoluta insensibilidade e total desrespeito à alma de Vila Isabel e ao inesquecível compositor da nossa mais refinada música popular.
Clarice tem razão: “Não queiras compreender. Viver ultrapassa todo entendimento.”