André Seffrin*
Como nenhum outro de sua geração, ele foi numeroso e diverso; um amoroso da palavra que administrava como única possibilidade de completar o vivido – escrevo para burlar a morte, costumava dizer. Num trânsito entre o trágico e o cômico (esta faceta, a do humor, tão pouco estudada em sua obra), foi operístico em seus enlaces e desenlaces e em tudo que triturou ou transfigurou em prosa ou verso. “Morre o poeta e romancista da solidão” noticiou o segundo caderno do jornal Zero Hora em fins daquele agosto de 1991. Bem mais que um poeta e romancista da solidão, um escritor de amplos recursos estranhamente incompreendido por muitos que ajudou a consagrar.
O poeta, o romancista, o contista, o cronista, o dramaturgo, o tradutor, o ensaísta, o memorialista, o crítico de arte, o repórter literário, o antologista, o missivista compulsivo; com prêmios importantes em quase todos esses gêneros, ele conquistou gerações de leitores ainda como genuíno contador de histórias infanto-juvenis. Nesse campo, dos livros para crianças e jovens, é autor dos sucessivamente reeditados O azulão e o sol, O canário e o manequim, A pomba da paz (que foi enredo da Portela no carnaval de 1987), O burrinho e a água, Moça lua, O futebol do rei leão… Já os seus três volumes de diários, publicados entre os anos 1960-70, seguem sem reedição, como sem perspectiva de edição estão os seus diários inéditos. Em outros tempos chegaram a dizer que o melhor Walmir Ayala está nessas páginas de memórias. Verdade é que, um pouco à maneira de Gide, ele fez dos seus diários um laboratório de criação.
ACERVO E MEMÓRIA
NA CASA RUI BARBOSA
Releio agora À beira do corpo (1964) e Partilha de sombra (1981), livros que estão entre os melhores de Walmir, e volto ao fascínio do extraordinário prosador alicerçado no poeta. À beira do corpo, “um dos romances mais belos e lancinantes da literatura brasileira”, segundo Lêdo Ivo, com enredo ambientado em Vila Nova, pequena cidade ficcional nas imediações de Porto Alegre, tem potência de tragédia grega. Partilha de sombra, narrativa em contraponto que se passa no bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, percorre um caminho diferente mas igualmente cruel em sua exposição de motivos. São, os seus personagens, seres obsessivos, enovelados no mais perturbador desconforto, entre o amor e a morte. A vida é rapina, diria aqui o velho urso de Ipanema, Rubem Braga – e é isso o que Walmir Ayala torna visível nos seus romances poemáticos, escritos, como O Ateneu de Raul Pompeia, com crispado fervor.
Em 1992, encaminhei para Plínio Doyle o acervo literário de Walmir Ayala, aberto à consulta no Arquivo Museu de Literatura Brasileira, o AMLB, da Fundação Casa de Rui Barbosa. Daquele extenso material, só preservo comigo alguns livros inéditos e poucas fotos para futuras edições. E não podemos esquecer que, num meio editorial como o nosso, sensível às incertezas do mercado, publicar livros é coisa de gente teimosa. Sem contar que, na oportuna observação de Flávio Moreira da Costa, preocupados em preservar “cânones”, todas as nossas atenções se voltam para os autores mais evidentes, repetidos e aceitos pelo sistema acadêmico e editorial – paramos em Guimarães Rosa e Clarice Lispector quando na verdade deveríamos ir adiante. Temos uma literatura ainda desconhecida e negligenciada, e é como se vivêssemos num país sem memória, baldio, ignorantes de nós mesmos.
Em poema escrito em 1990, Walmir sugeriu ser sepultado, como de fato aconteceu, no cemitério marinho de Saquarema. O mesmo pedido ele me fez repetidas vezes, naqueles meses finais. Cardíaco por predestinação familiar, o coração do poeta dava os seus sinais. Pois era em Saquarema que ele costumava passar os fins de semana, de sexta a domingo, numa casa colonial que hoje deu lugar ao prédio de uma farmácia, triste destino do pouco que resta da arquitetura do século XIX na cidade. No poema ao qual me refiro, entre outros vaticínios, lemos também este: “lembrem e inventem sobre a minha vida, mas deixem-me ali”. Ali, no cemitério ao lado da Igreja de Nossa Senhora de Nazaré, onde pretendia ouvir “eternamente o mar”.
WALMIR AYALA E
MÁRIO DE ANDRADE
Dos dias idos e vividos sobram, quando muito, retalhos de recordações que os vivos emendam e costuram ao gosto das circunstâncias. Para não ficarmos no terreno pantanoso da subjetividade e evitar o pior da desinformação, precisamos de pesquisa, por mais penosa ela se mostre. Tanto para se produzir uma vacina quanto para se escrever uma dissertação de mestrado, pesquisas são necessárias. Mas nem sempre funciona assim. A sina do país baldio prepondera, e nada mais faço, aqui, que reafirmar – ó Nelson Rodrigues – o óbvio ululante.
Correspondências, manuscritos, datiloscritos, a imensa colaboração para jornais e revistas, milhares de itens, o arquivo pessoal e profissional de Walmir Ayala está entre os mais volumosos do AMLB, que abriga quase uma centena de acervos de fontes primárias. Lá estão os arquivos de Cruz e Sousa, Augusto Meyer, Lúcio Cardoso, Pedro Nava, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Maria Jacintha, Rubem Braga, Clarice Lispector, Samuel Rawet, Foed Castro Chamma, Fausto Wolff, Fernando Sabino… Por preguiça, despreparo ou ignorância, muitas vezes dispensamos esse manancial e nos apoiamos no já sabido. O que infelizmente acontece muito, até no prestigiado meio acadêmico. Mais: com a internet, a frequência de informações equívocas é assustadora, e em relação à vida e à obra de Walmir, creio que ele sabia as coisas, melhor deixar que “lembrem e inventem” à vontade.
Apesar da existência de Machado de Assis, nosso mais genial polígrafo, dizem que eles, os polígrafos, são pouco valorizados em nossa literatura. Será? Mário de Andrade não tem, e nem se exigiu dele que tivesse, a têmpera de nosso Machado, mas soube também distribuir-se como poucos. Múltiplo, desigual, polêmico, poeta que se desdobrou em crítico de arte, prosador ardente com irreprimível compulsão confessional, Walmir foi, como Mário, um estivador da literatura e um distribuidor de poesia. Com uma inequívoca diferença: ainda não alcançou reconhecimento à altura de seu esplêndido legado.
*André Seffrin é crítico e ensaísta, autor de Revolta e protesto na poesia brasileira (Editora Nova Fronteira, 2021), entre outros livros.