Desde que se iniciou o processo de construção da Barra Franca, um molhe de pedras de 150 metros de extensão no mar, na entrada da Lagoa de Saquarema, nos anos 90, uma polêmica se estabeleceu na cidade nascida de uma pequena vila de pescadores, há séculos atrás. No século XIX, em 1822, o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, em visita de estudos ao Brasil, passou por aqui e descreveu a forma como os habitantes locais abriam a barra da lagoa quando precisavam oxigenar as águas e aumentar a pesca, possibilitando a entrada de peixes na lagoa. A descrição, publicada no livro “Viagem pelo distrito dos diamantes e o litoral do Brasil” revela o ato coletivo dos pescadores que agiam com pás e panelas, entre outros utensílios, para cavar a areia e abrir um canal na boca da barra da Lagoa de Saquarema.
O viajante partiu com sua trupe do Rio de Janeiro em 18/08/1818, às 2 horas, e levou uma hora para chegar até Praia Grande antigo nome de Niterói. E, em pouco tempo já descreve: “Entre Praia Grande e Cabo Frio, estende-se paralelamente ao litoral uma longa série de léguas que embelezam a região”. Cita a Lagoa de Jaconé e “enfim as mais importantes Lagoas de Saquarema e Araruama”. Passando por Macacu e pela pequena Vila de Santo Antônio de Sá (hoJe Itaboraí) que fica a 7 léguas e meia da capital, Saint-Hilaire encontrou uma floresta virgem e uma montanha chamada Serra do Tingui, onde ao pé da serra encontrou uma planície, colinas e “o vasto lago de Saquarema no horizonte”. Ele ainda registra “a soberba plantação de cafeeiros” e depois uma “montanha de areia branca” (duna?) apontando a direção do mar e pirogas (canoas de origem indígena) de pescadores na lagoa…
Subindo o morro da Igreja de Nazareth, Saint-Hilaire vê o areal sem nenhuma vegetação e descreve: “Nesse lugar os habitantes de Saquarema rasgam de tempos em tempos um canal que estabelece comunicação entre o lago e o mar, trabalho que exige poucas forças, pois que o solo é constituído somente de areia.
Os peixes entram no lago com as águas do mar, e estas, transportando mais areia, logo fecham o canal. Quando se tem pescado todo o peixe que havia entrado no lago, rasga-se novo canal e o lago de novo se enche. A parte da restinga onde se rasga o canal, ou melhor, se se quiser, a extremidade da restinga, tem o nome de Barra, porque é nesse lugar que se faz a comunicação do lago com o mar. Dizem que outrora se podia entrar com embarções do oceano no lago, mas trabalhos mal orientados entupiram a entrada. Restabelecer essa comunicação, se não é impossível, seria dar vida a esta zona e enriquecê-la.”
OBRAS COMPLEMENTARES
Séculos depois, nos anos 90, o saudoso jornalista Silênio Vignoli, colaborador do jornal O Saquá, me descrevia mais ou menos a mesma cena e me apresentava uma fotografia do fato registrado por ele, quando era jovem e presenciara essa abertura da barra feita pelos braços e mãos saquaremenses, em sua maioria pescadores. Quando viemos morar em Saquarema, há mais de 30 anos, eu e meu marido Edimilson Soares ouvíamos dos pescadores e moradores a informação de que a cidade só iria crescer efetivamente depois da abertura da Barra Franca. Mas ninguém explicava efetivamente o que seria a Barra Franca, só informavam que era um projeto antigo do prefeito Carlos Campos, o Carlinhos. Assim, curiosos, fomos a Araruama pesquisar na antiga Serla, órgão da Secretaria do Meio Ambiente do Estado do Rio de Janeiro e lá encontramos o diretor, arquiteto Gilmar Magalhães, que nos olhou inicialmente com desconfiança, mas depois nos mostrou cinco projetos da Barra Franca, entre eles um que abria um canal em frente ao pé do morro da igreja, na Praça do Coração, onde atualmente entra o mar com sua espuma branca cheia de areia, quando tem ressacas violentas.
Pouco tempo depois, se iniciou a obra da Barra Franca, causando muito esperança entre os pescadores e moradores locais, que mesmo não entendendo nada de obras, persebiam o cheiro ruim nas margens da lagoa de Saquarema, quando a barra ficava fechada e os peixes apodreciam. Naquela época, vinham então máquinas que abriam o canal, que se fechava rapidamente se fechava novamente. A obra em 2001 requereu muitos estudos e a construção de um molhe de pedras, uma nova passarela de pedestres ao lago da Ponte Darcy Bravo, alargando o espaço entre as margens da lagoa naquele local, uma contenção das margens da lagoa, reforma e ampliação da Ponte do Girau, e várias drenagens. Tornou-se portanto uma abertura permanente, mas sempre sujeita a variações do mar. Era uma promessa de vida nova à lagoa, mas que não resolveu a demanda por novas dragagens e pior: se iniciou a dispersão das pedras do molhe, devido à força das ondas.
Em 2013, tempos depois da inauguração da obra, surgiu a necessidade da reconstrução do molhe de pedras e aceleração da dragagem da lagoa, para viabilizar um canal navegável permanente, com entrada e saída de barcos de médio porte. Vital para a lagoa, para o turismo local, geração de renda para os pescadores e para o meio ambiente, o projeto Barra Franca foi saudado pelo então governador Sérgio Cabral, deputado Paulo Melo e prefeita Franciane Motta. Tinha se tornado uma lagoa saudável e ambientalmente limpa, sonho dos moradores de todo o município, mas especialmente dos bairros litorâneos como Porto da Roça, Porto Novo, Verde Vale, Centro, Areal, Gravatá, Jardim, Barreira, Mombaça, Boqueirão, Barra Nova, Manitiba, Jaconé e Sampaio Corrêa. A oxigenação das águas da lagoa, através da bertura permanente da barra, continua sendo essencial para a reprodução dos peixes e incentivo ao turismo, só possível com o aporte do Governo do Estado.
Vital para a econonomia local, pesca, turismo, meio ambiente e lazer da cidade, a Barra Franca viu as obras serem paralizadas posteriormente pelo Ministério Público Federal, a pedido do Instituto Onda Azul, que gerou um grande debate e polêmica entre os pescadores. Alguns chegaram a perder seu barcos, devido ao embate com as pedras que rolavam do molhe da Barra Franca, rumo ao fundo da lagoa. Ao tentar sair da lagoa, alguns pescadores às vezes não voltavam. Outros perderam seus motores, na tentativa de ganhar o mar. Enfim, começou a ficar cada vez mais grave a quantidade de areia que assoreava a lagoa a olhos vistos. Bancos de areia surgiram antes de depois da ponte Darcy Bravo, onde antes da dragagem radical da Barra Franca havia uma “coroa”, uma espécie de “ilhazinha” em frente à casa da família Casimiro Vignoli, pai do jornalista Silênio Vignoli, que hoje abriga o Centro de Memória de Saquarema.
OBRAS EMERGENCIAIS
Porém, segundo o Portal da Transparência, o contrato firmado pelo Governo do Estado, através do INEA (Instituto Estadual do Ambiente) com a Dimensional Engenharia, estabelecia o “ Serviço Emergencial para Desobstrução do Canal Hidráulico” a partir da remoção de rochas deslocadas do molhe, e apontava para a necessidade de contenção das rochas com tela, um serviço não foi autorizado pelo contratante. Oresultado foi lamentável, pois as rochas se moviam de acordo com a força das ondas… um desastre anunciado que foi pelos responsáveis pelas obras, incluindo autoridades governamentais. Pois estava previsto a remoção das pedras e recolocação, mas sem as telas para segurar as rochas no mar, nada feito!
Segundo relatório da Dimensional Engenharia, que realizou essas obras, os equipamentos nauticos foram: escavadeiras anfíbias, batelões, rebocadores, balsas com escavadeiras embarcadas, embarcações de apoio e equipes com equipamentos de mergulho. A obra terrestre exigiu: escabadeiras convencionais e long heach, escavadeiras a cabo com caçamba clam shell e dragline, guindaste hidráulico e a cabo, tratores de esteira, caminhões basculantes, carretas, caminhões carrocerias com guindauto, caminhão com comboio, perfuratrizes, geradores móveis e estacionários, veículos de apoio (oficina móvel, caminhonetas e carro de passeio) e equipamentos diversos de solda e corte. E o relatório explica: “Ressalte-se ser uma uma solução provisória e emergencial até que se implemente uma solução definitiva para o caso, o que deve ocorrer o quanto antes, bem como os impactos ambientais colaterais irrelevantes destas intervenções”. E continua: “Cabe destacar que se trata de uma intervenção emergencial provisória para solução de um grave problema ambiental e socioeconômico”.
A partir daí, as obras eram anunciadas e em seguida paralisadas. Assim foi em 2014 e em 2021, quando o então secretário estadual do Meio Ambiente e Sustentabilidade do Rio de Janeiro, Tiago Pampolha, anunciou obras emergenciais, suspensas em fevereiro de 2022, por falta de um EIA-RIMA (Estudo do Impacto Ambiental – Relatório de Impacto Ambiental) atualizado. Mas anos depois, a Prefeitura de Saquarema informou “conforme compromisso assumido junto ao Ministério Público Federal, em 2 de outubro de 2023, através do Ofício SeMMa nº 60/23, apresentou ao então Secretário Estadual do Ambiente o “Relatório Técnico Consolidado do Estudo de Concepção e Anteprojeto de Engenharia de Desobstrução do Canal da Barra Franca da Lagoa de Saquarema”.
Agora, em outubro de 2024, foram anunciadas novas obras… Dias Antes da eleição, técnicos da Secretaria Estadual do Ambiente e do INEA vieram a Saquarema anunciar a retomada das obras, com a presença da prefeita Manoela, do deputado Pedro Ricardo e técnicos do INEA e da Secretaria Municipal do Meio Ambiente, entre outras autoridades, numa das margens da lagoa, ao pé do morro da igreja de Nossa Senhora de Nazareth, na Praça do Coração. O lançamento extra oficial de novas obras foi rápido e rasteiro, como convinha ao periodo eleitoral, para não virar comício! Foi muito discreto. Mas deixou na cabeça de muitos saquaremenses uma dúvida. Será que depois do gasto com tanto dinheiro público – calcula-se cerca de 52 mil reais – desta vez a obra vai vingar? Será que as rochas finalmente serão protegidas com tela? Será que os pescadores não mais vão sofrer desastres no canal da Barra Franca? E a areia, vai deixar de assorear a lagoa? O que será, que será? São tantas as indagações que essa obra já se tornou uma novela, em capítulos a cada nova obra, a cada novo governo.